Hoje apresentamos um
dos discos mais desconcertantes que já ouvimos em toda a nossa vida.
É que, para além do interesse e da ambiguidade que as letras das
canções só por si encerram no próprio contexto do disco, há
também a destacar o facto de a intrigante e bela fadista em causa
ter desaparecido sem deixar qualquer rasto no universo fadista (à
semelhança de outras fadistas da época), sendo o seu
paradeiro um verdadeiro mistério.
No que àquele que
pensamos ser o seu único disco diz respeito, arriscamo-nos a deixar
aqui uma opinião que muitos considerarão um grande disparate. Mas,
por mais voltas que demos, não o conseguimos deixar de classificar (pelo menos tematicamente) como um disco de fado
conceptual, o que desde logo, admita-se, já por si só é um
estranho conceito atendendo ao género musical a que nos referimos.
As letras escritas
por Fernanda Oliveira (e outra por Francisco Radamento), de forma
consciente ou não, têm como temática um conceito muito preciso: o
estranho lamento de uma esposa que ama o seu marido apesar deste ser
o oposto da dedicação que a sua esposa lhe devota. E acreditem,
leitores, que não foi fácil chegar a esta definição....
É que na realidade o
disco, conforme se disse, é todo ele um estranho contracenso e um
oposto de sentimentos que paradoxalmente vão desaguar num consenso: o amor de uma mulher ao seu marido. Na verdade, este E.P. da
Alvorada é dominado por três canções, com letra de estilo
narrativo, cantadas na primeira pessoa por uma esposa que
aparentemente se encontra revoltada com a sua condição de mulher
desprezada por um marido que tem por hábito chegar de madrugada a
casa (provavelmente vindo da taberna). A expressão máxima dessa
revolta corporiza-se na letra que dá corpo ao fado “Igualdade”,
segundo o qual aquela pobre mulher, numa tentativa de emancipação
acaba por dar o troco ao marido, fazendo o mesmo, ou seja, saindo de
casa (para visitar a mãe) durante a noite ao ponto de o seu marido
ter chegado a casa e não a ter encontrado, tendo ficado
surpreendido por não ver a sua mulher deitada. Neste fado, o
resultado final da acção da esposa acabou por dar os seus frutos,
na medida em que o seu marido, desde esse dia, alterou mesmo o seu
comportamento ao ponto de “assim que a lua aparecia” já se
encontrar metido na cama.
Não podemos deixar
de ficar indiferentes ao conteúdo da letra “Igualdade” que,
diga-se, se tivesse sido gravada isoladamente, ou seja, num disco de
uma face só, muita polémica teria provocado (caso a censura da
época a deixasse escapar, claro). Porém, como tal canção se
encontra inserida num disco em que Fernanda da Luz canta também os
temas “Amor à pancada“ e “Meu esposo”, aquela letra acaba
por perder qualquer força, transformando o que aparentemente parecia
ser um disco de crítica social e um disco (de intervenção)
feminista numa autêntica paródia machista. Para tal basta o leitor
centrar-se em algumas ideias-base da canção “Amor à pancada”,
título que nos tempos que hoje correm, bem poderia travestir-se numa
forma também conceptual apelidada de violência doméstica. Para
tal basta referir que se defende que o amor sem pancada nunca chega a
ser amor enquanto ideal central deste fado, aliada a uma segunda
ideia-base: a extrema dedicação desta (afinal) submissa esposa
que não se importa de levar porrada!
Parece-nos, contudo,
que o extremo da contradição surge com o último fado, “Meu
Esposo”, no qual, mais uma vez a mesma esposa (novamente na primeira pessoa) parece afinal negar toda a letra do tema
“Igualdade”, ao assumir a manifesta desigualdade entre a si e o
seu marido no que à questão da igualdade dizia respeito. Ou seja,
se no tema “Igualdade”, se revolta contra uma situação
desigual, nesta última canção não só se conforma com essa
mesma desigualdade, como também a confirma respondendo ao seu marido
com uma dúzia de beijos.
Naturalmente,
estamos perante um disco interessante mas de análise difícil e que,
sinceramente, muito nos tem intrigado. Sendo certo que Fernanda da Luz
foi apenas a mulher que deu a voz às letras que lhe foram dadas para
ela cantar, sendo de todo impossível, face aos poucos elementos que
possuímos sobre a gravação deste disco, chegar a uma conclusão
que não seja mera especulação sobre as intenções que
verdadeiramente estiveram por detrás da gravação destas três
canções.
Fernanda da Luz, por altura da gravação do disco |
Sobre
Fernanda da Luz, é muito pouco o que podemos partilhar com os nossos
leitores, sendo certo que deles esperamos a preciosa ajuda para
desvendarmos um pouco mais desta fadista, a cuja graciosidade
ficámos desde sempre rendidos. Ainda assim, adiantamos que se
estreou como profissional em 1958 no café Luso em Lisboa,
tendo ganho, inclusive, um concurso e sido coroada como “rainha”
num concurso de “cantadeiras” (como na época se chamavam).
Trabalhou depois em vários retiros, incluindo a casa de fados da
famosa Márcia Condessa. Depois foi para o Porto, cantando em quase
todas as casas de fado portuenses (A candeia, O tamariz e o
Palladium). Em Maio de 1965, depois do seu reaparecimento, aceitou
um convite para cantar em Angola durante vários meses, local onde
ainda se encontrava em Junho desse ano, juntamente com fadistas que
ai se encontravam a cantar, tais como Henriqueta de Almeida, Maria
Emília, Mimi de Sousa, Maly Socorro, Maria Silvestre (outra
desaparecida ...) e Lourdes Oliveira. Depois dessa data, não mais
ouvimos falar de Fernanda da Luz. Terá casado em Angola ? Terá
abandonado a vida artística ? Os leitores atentos o dirão.
Clique no Play para ouvir (excepcionalmente na íntegra, pelo seu interesse) os fados "Igualdade", "Amor à pancada" e "Meu esposo"
Fernanda da Luz
Alvorada MEP 60313
A) Chiquinho Faia (José Marques/ Fernanda de Oliveira) / Igualdade (João da Mata/ Fernanda de Oliveira)
B) Amor à pancada (Alfredo Marceneiro/ Francisco Radamanto) / Meu esposo (Casimiro Ramos/ Fernanda de Oliveira)
Acompanhamento: Marcírio Ferreira, António Proença e José Maria Carvalho