Não podemos ficar indiferentes ao disco que recentemente nos chegou às mãos, não fossemos nós da mesma terra que o assim conhecido na literatura portuguesa como o "Poeta Cavador". Aliás, ainda nos lembramos de um dos nossos livros da Escola fazer referência aos seus versos e de uma fotografia sua, a preto e branco, tirada certamente no final do século XIX, na qual podemos apreciar a figura de um homem simples, da lavoura, com pouco à vontade para ser fotografado. Falamos de Manuel Alves, o Poeta Cavador, que nasceu em Vale de Boi, freguesia da Moita em Anadia, tendo sido um poeta repentista e analfabeto, sendo que o seu nome apenas ficou para a história pelo facto de Tomás da Fonseca ter um dia compilado os seus versos e simultaneamente lhe atribuído o cognome de Poeta Cavador. Manuel Alves, apesar de analfabeto, foi também um boémio da noite coimbrã, cantando fado, chegando mesmo a privar com o célebre fadista Hilário. Infelizmente, faleceu em 1901, pouco antes da gravação do primeiro registo sonoro em Portugal (pois descobertas recentes atribuem a 1902 a primeira gravação alguma vez registada) e, obviamente, não chegou a gravar qualquer canção. Percurso inverso teve outro Poeta Cavador, não de Anadia mas sim do Mucifal (aldeia do concelho de Sintra) que em 1984, depois de mais de cinco décadas a escrever versos e canções, gravou o seu primeiro disco, acompanhado pelo Conjunto da União Mucifalense. Falamos agora de José Fernandes Badajoz, que interpretava os seus poemas e as sua música, animando festas de beneficência, Carnavais, embora sempre com um carácter não profissional, uma vez que a carreira de artista sempre lhe passou ao lado, apesar de algumas propostas nesse sentido terem sido feitas. Ao contrário de Manuel Alves, José Fernandes não seria analfabeto, pois ele próprio guardou durante anos os escritos que mais tarde serviriam de base à gravação dos 12 temas que constituiem o L.P. que hoje apresentamos. Efectivamente, o disco é preenchido com canções escritas entre 1934 e 1983, tematicamente nada surpreendentes face ao cognome que partilhava com Manuel Alves. Na verdade, as letras estão na sua grande maioria relacionadas com a Natureza, fazendo uma apologia ao orgulho da terra e das colheitas e à peculiar sabedoria que muitas vezes só as gentes do campo possuem devido precisamente a essa forte ligação entre a terra e a Mãe Natureza. Versos como "A minha casinha tem/ Uma vista confortável/ Dela tudo vejo bem/ Respirando um ar saudável" ou "Do campo é que vem/ o pão que todos comemos/ Do pão é que vem/ O vinho que nós bebemos/ E mesmo p'ra quem/ só p'la cidade suspira/ No campo é que tem/ ar puro que se respira", ilustram bem a realidade que José Fernandes quis realçar, quando aos 63 anos, gravou este disco. Gravado quase 100 anos depois de o outro Poeta Cavador ter cantado os seus fados em Coimbra, José Fernandes recorreu a um estilo musical bem diferente para dar forma aos seus versos, num registo bem mais popular, alegre, em clara homenagem à sua terra e às suas raízes, escondendo palavras de esperança e de exaltação aos trabalhadores do campo, segundo ele muitas vezes injustamente considerados rudes e mal-educados. Provavelmente terá sido este o único disco de José Fernandes, de edição de Autor, com sucesso diminuto em Portugal mas com largo reconhecimento na aldeia do Mucifal, onde o seu nome já é nome de Rua. Da nossa parte, deixamos aos ouvintes um excerto do disco deste Poeta Cavador, aliás, Poeta Cantador.
Clique no Play para ouvir um excerto do disco
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